Numa recente conversa natalícia em família - daquelas que acabam por versar invariavelmente sobre política - veio à baila uma historieta remota que o meu sogro, alentejano dos sete costados e comunista dos oito costados, resolveu desenterrar do baú das memórias dos anos malditos do profundo Alentejo.
A história, surgida entre a segunda e a terceira garrafa de “Terras do Pó” tinto, recuperava a mítica figura de Gonçalves Correia, anarquista convicto e, segundo consta, o primeiro a pôr em funcionamento uma verdadeira comuna em Portugal, nos idos anos de 1917/1918, no Vale de Santiago.
Relatava o meu sogro, comovido, a lembrança que tinha do homem de barbas e cabelos brancos compridos que, como caixeiro-viajante que era de profissão e vegetariano de opção, regularmente irrompia pelo modesto café que os seus pais possuíam na aldeia de Alqueva requisitando prontamente com ternura o seu manjar predilecto: “D. Maria, arranje-me aí uma açorda de alho com um ovo!”.
Entre mais uma garfada e um golo, continuava o meu sogro recordando com imenso afecto o homem que, de forma não intencional, o tinha influenciado no seu percurso de vida, mostrando-lhe através das suas acções tão bondosas e desinteressadas que existe lugar para a solidariedade, a tolerância e o respeito pelas pessoas e pelo ambiente no mundo em que vivemos e, por conseguinte, lugar para uma sociedade mais justa.
Com as lágrimas a humedecerem-lhe as órbitas, as lembranças pendiam agora para as noites cerradas em que Gonçalves Correia humildemente pedia para passar para a parte traseira do café, onde existia um rádio que surrateiramente era sintonizado na Rádio Moscovo e que o mesmo, mais experiente na matéria, ensinara a “camuflar”, colocando um copo de água no topo, impedindo assim, segundo rezam as crónicas, a captação das ondas curtas pela GNR.
Agora, e já com as gotas a desprenderem-se dos seus olhos e a querem pender sobre o bacalhau com batatas, veio à baila uma outra história, das muitas que pareciam brotar a cada instante dos confins da sua memória de decano, tratava-se de António Romão (sogro do meu sogro, ou seja pai da minha sogra) que sendo estafeta na aldeia - possuía uma carroça que transportava mercadorias e pessoas de e para Moura -, certa vez ao fazer um frete de Moura para o Alqueva em que trazia a carroça carregada de bens e apinhada de aldeões, Gonçalves Correia que também apanhara boleia, após a passagem do rio Guadiana na barca que fazia a ligação das margens, se apeou e fez todo o percurso restante a pé para aliviar o macho do sofrimento de puxar tanto peso durante tanto tempo.
Outras histórias houve, de um rol que parecia infindável e que acabaram por tornar o bacalhau do meu sogro ainda mais salgado devido ao infrutífero esforço de contenção das lágrimas, como aquela em que Gonçalves Correia, na praça de Moura, comprava gaiolas de pássaros, para depois os soltar aos vivas à liberdade perante o ar de espanto dos transeuntes.
Assim, por longo tempo e à medida que novas memórias iam surgindo, se foi recordando uma figura cada vez mais admirada por todos os convivas, que naquela noite natalícia comemoraram não só um, mas dois homens justos e solidários.
E porque homens assim não abundam, e porque de memórias e da História também se faz o futuro, dignei-me a fazer uma procura na internet sobre tão carismática figura, tendo encontrado pouca coisa sobre Gonçalves Correia. No entanto, daquilo que consegui encontrar, apraz-me referir que a sua memória continua a ser preservada por um blog de nome
“Centro de Cultura Anarquista Gonçalves Correia” do qual retiro, com a devida vénia, a biografia que nele consta:
“António Gonçalves Correia (1886 – 1967) responde por si só às razões de ser deste novo projecto libertário no Alentejo. Tomar-lhe o nome para um Centro de Cultura Anarquista dinamizado a partir de Aljustrel, reclama a sua herança e recorda a urgência dos apelos de que fazia eco desde há um século para cá, enquanto percorria como caixeiro viajante as vilas do Baixo Alentejo. Não o chegamos a conhecer. Mas a sua força surpreendeu-nos enquanto a memória anarquista mais viva (e calorosa) que viemos a encontrar à nossa volta em diversas gerações que lhe tomaram o pulso. Julgo que hoje recordam, para lá da sua proeminente figura viva de revolucionário, essa força, essa dignidade humanista e anti autoritária, que lhe emanava na difusão do ideal anarquista. Quando uma nova geração, neste novo século, trava de novo encontro com Gonçalves Correia numa nova aventura anarquista, sabemos em diante de que o seu nome não figurará apenas nas estantes académicas a ganhar pó.A vida de Gonçalves Correia cruza-se na primeira metade do século XX com o emancipar das ideias anarquista, com as lutas anarco-sindicalistas das minas de Aljustrel, São Domingos ou Lousal, com as lutas dos camponeses do Alto ao Baixo Alentejo e com os vários grupos e jornais anarquistas de Portalegre e Évora, a Odemira ou Cercal do Alentejo, etc. Colaborador de vários jornais como A Batalha, A Aurora, O Rebelde, em 1916 funda o semanário A Questão Social na vila de Cuba. Um ano depois publica o opúsculo Estreia de um crente, tendo ainda vindo a publicar outra obra A Felicidade de todos os Seres na Sociedade Futura (1ª ed.1923).Sobre os princípios de vida de Gonçalves Correia, a sua biografia chama a atenção para que quem hoje olhe para os «tópicos da cultura libertária de há 100 anos, não deixará de se surpreender com a actualidade de muitas das propostas. Com efeito, grande número dos princípios que enformam a nossa modernidade – a liberdade, a emancipação da mulher, a defesa do amor livre, a ecologia, o respeito pelos animais, o naturismo, certos estilos alternativos de vida – mergulham as suas raízes na velha moral anarquista».Gonçalves Correia, vegetariano e tolstoiano, preconizou, como refere J.M. Carvalho Ferreira, um tipo de anarquismo naturista e pacifista, numa época em que predominavam as teorias e as práticas do anarco-comunismo e do anarco-sindicalismo. Hoje, certamente bem mais do que o seu posicionamento essencialmente moral, alicerçado na transformação do indivíduo através da bondade e da fraternidade, a vivência deste natural de São Marcos da Atabueira (Castro Verde) é para nós de grande actualidade ao firmar essencialmente dois aspectos principais. Por um lado a afirmação e o alcance da acção individual e dos compromissos que lhe cabem por inteiro à margem dos rebanhos e das massas políticas e amestrados; e por fim a urgência em observar as lutas sociais em estreita relação com as questões do nosso planeta, como um todo. Este último aspecto “ambiental” tornou-se assim tão-somente referido num lugar comum, mas a verdade é que em Gonçalves Correia a desconstrução desse discurso de hoje tão politicamente correcto, emergia e aprofundava-se já no discurso anarquista dos inícios do séc. XX em Portugal e é hoje o discurso da primeira linha dos anarquistas do séc. XXI perante o avanço avassalador da Máquina sobre a vida humana, animal e do planeta terra.Nesse sentido o seu testemunho mais rico, do qual cada vez mais opções e projectos entre a serra e a planície alentejana parecem hoje herdar, residiu nos projectos comunitários da Comuna da Luz, em Vale de Santiago, entre 1917 e 1918, e a Comuna Clarão, em Albarraque, já nos finais da década de vinte e inícios de trinta do século XX. O pôr em prática a utopia, os princípios e práticas do anarco-naturismo, não se abstraindo da ligação destas comunas às populações em redor, surpreende o próprio: «Mas será isto verdade? Não estarei eu sonhando? Será verdade que este pedaço de terreno sagrado, que o dinheiro da solidariedade humana resgatou, pertence de hoje em diante a um grupo de homens que são irmãos, a umas dúzias de indivíduos que querem ser livres na Terra Livre, a um punhado de seres que detestam a vida irracional das grandes cidades? Será verdade que morreu aqui a árvore maldita da propriedade privada? Será verdade que estes 3 quilómetros benditos vão ser explorados em benefício comum? Será verdade que aqui vai ser a divina cidade da Luz e que além, daqui a 3 mil e tal metros, é a terra das trevas, o sítio do vício, a estrada do crime?».Reprimida policialmente após a revolta dos trabalhadores rurais do Vale de Santiago durante a crise de 1918, no alargado surto grevista dos trabalhadores rurais alentejanos, a comunidade foi desmantelada e o próprio Gonçalves Correia preso. Mal sai da prisão reacende a chama na Comuna Clarão em Albarraque, prosseguindo um ideal de vida alternativo, albergando depois de 1926 e até à sua dissolução, a resistência e os perseguidos da ditadura.Por fim, por outros caminhos prosseguirá António Gonçalves Correia, para ainda hoje ser recordado como o homem que comprava pássaros para depois os soltar na praça pública, no meio de vivas à Liberdade.”
In “Centro de Cultura Anarquista Gonçalves Correia”
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